domingo, 17 de maio de 2009

Duas respostas

Então, tal como prometido, aqui fica a resposta quilométrica às vossas questões.


Considerando a tua pergunta, Blimunda, 'poderemos re-inventar o homem e as relações sociais?'

A um nível individual claro que sim, a vida é um processo em que nos re-inventamos e à nossa relação com a realidade. Mas isto é um ponto de vista muito pessoal, e a discussão dava pano para mangas, para posts, para blogs...

Mas parece-me que a tua pergunta se referia a um nível colectivo, porque pouco ou nada muda se não forem muitos a mudar. Provavelmente não podemos exigir que dum momento para o outro a maioria da humanidade ultrapasse aquilo que sempre foi o seu maior desafio, prescindir do apego ao poder e à posse como forma de se defender da ilusão e da fraqueza. Foi isso que nos trouxe à beira do descalabro ambiental e social, e foi isso que acabou por transformar a nossa era naquilo que alguns já chamaram de Idade do Folhetim (Herman Hesse, O Jogo das Contas de Vidro), a Era da estupidez, a Era da insensatez. Muitos acham, como eu também acho, que se chegou ao fim da linha, ou que se passou mesmo para lá dos limites. Mas quando se bate no fundo há duas hipóteses: ou nos destruímos, ou mudamos de sentido. Alguns acham que estamos à beira da auto-destruição, outros acham que temos a oportunidade perfeita para dar um grande passo para a humanidade. E esta última hipótese é a utopia.

Não sei o que lá vem, mas naturalmente prefiro acreditar na utopia. Não sei se me estou a agarrar aos destroços de um navio naufragado, mas parece-me que não há mesmo alternativas aceitáveis. E há muita gente que vem trabalhando por formas de viver diferentes, até agora pouco visíveis, mas cada vez com mais aceitação.


Desde há alguns anos que crescem os movimentos de reacção ao modo de vida consumista, à classificação da qualidade de vida com base na abundância material e no consumo cego e insustentável. Movimentos como os da simplicidade voluntária, que têm como mote 'tenha menos, viva mais' defendem modos de vida com base no baixo consumo de recursos, na valorização da vida humana pela forma em como o homem se relaciona harmoniosamente com o ambiente, com os outros seres e com o tempo. Há alguns anos o reino do Butão adoptou um conceito que teve uma grande repercussão no ocidente, o da Felicidade Interna Bruta, por oposição ao Produto Interno Bruto, recusando o modelo de desenvolvimento baseado no crescimento material e no consumo. Muitos destes conceitos têm inspiração na filosofia budista, que influencia cada mais gente no materialista ocidente, e esta filosofia baseia-se precisamente na busca da 'felicidade' ou do sentido da vida, através do desapego das ilusões, nomeadamente da segurança material. De forma mais ou menos inconsciente, estes conceitos vão penetrando nas mentalidades ocidentais. O crescimento das prateleiras de livros de desenvolvimento pessoal nas livrarias são um bom sinal disto, e uma boa parte deles têm influência mais ou menos directa da espiritualidade oriental (e muitos deles são lixo, mas isso já é outra conversa).


Mas mesmo dentro da tradição ocidental há muito que há grupos que adoptam um modo de vida frugal, e rejeitam o consumismo, a posse como objectivo de vida, e mesmo a tecnologia, como os amish, e os quakers. Há quem argumente que muita gente abandone esses grupos, mas eu acho surpreendente é que eles continuem a existir, apesar das regras morais apertadas a que se submetem os membros da comunidade. E o interessante é que eles são cada vez mais frequentemente citados como modelos de vida sustentável. Há outros grupos, que sem se separarem de uma forma tão evidente da sociedade, adoptam uma filosofia diferente, como por exemplo a sociedade antroposófica, que além de uma filosofia espiritual, tem comunidades em que se aplicam na prática os princípios de ligação com a terra e com a natureza, a educação baseada no desenvolvimento pela arte, formas de arquitectura 'orgânica', etc.


De uma forma mais prosaica, a necessidade de adoptar um outro estilo de vida vai-se tornando cada vez mais visível, ao nível da organização das comunidades, do desenvolvimento tecnológico (e esta dava azo a uma catrefada de links que tenho por aí perdidos já nem sei onde), das perspectivas empresariais, e de formas alternativas de desenvolvimento nos países mais pobres, que podemos apoiar directamente e sem o carácter hipócrita que tem muitas vezes a caridade e a ajuda, através do comércio justo.


Esta crise está a ter o condão de abanar as pessoas, de as fazer acordar, por vezes de uma forma forçada, para a necessidade de abandonar o individualismo e começar a valorizar a interdependência com os outros seres com que partilhamos este mundo, sejam humanos, sejam os outros seres vivos ou espaço físico, com os seus limites e restrições. É um movimento que cresce a olhos vistos. Não sei se vamos a tempo, mas espero que sim.

E respondendo à Mofina

As formas alternativas de vida (e pensando bem todas as formas de vida são alternativas umas às outras, por poucas diferenças que tenham entre si) podem ser vistas como produtos de consumo, ou podem gerar produtos de consumo. Começando pela última, não podemos ser contra o consumo e as trocas, caso contrário voltaríamos ao estado de caçadores recolectores em que cada grupo era completamente auto-suficiente. O que se chegou à conclusão nos últimos tempos é que o consumo tem que ser consciente - consciente das consequências do processo produtivo, da verdadeira necessidade dos produtos de consumo, e das consequências para o consumidor e para os demais do processo a montante e a jusante do acto de consumir (lembras-te da história das coisas?) Isso pode e deve ter como consequência que o preço dos produtos reflictam o seu verdadeiro valor, em termos de materiais, do trabalho, e do grau de sustentabilidade do processo produtivo. O que não acontece para a maioria dos produtos, mas tenta-se que aconteça para os produtos de agricultura biológica, e para os produtos de comércio justo. Isto é uma opinião pessoal, mas eu acho que tudo o que consumimos deveria ser certificado em como o processo produtivo é ambiental e socialmente sustentável. O que poderia encarecer bastante muitas coisas, mas introduziria um elemento de justiça, e talvez pudesse refrear o consumo desenfreado de inutilidades, estabelecer prioridades. Até agora é uma questão de escolha.
Eu sou suspeita, mas acho que consumir os produtos mais caros da agricultura biológica não é um luxo, é uma forma de valorizar, e de dignificar uma actividade que devia ser das mais nobres, por ser a base na vida - a agricultura feita pelo agricultor que conserva a terra e a vida, em oposição àquilo que são as 'fábricas' de alimentos industriais, controladas cada vez mais pela tenebrosa indústria agro-química, que explora indecentemente os recursos naturais e os povos que previamente espoliou dos recursos que os sustentaram durante séculos, milénios (e isto também dava pano para blogs, mas eles existem por aí).

Em relação a encarar as formas alternativas de vida como produtos de consumo, e formas de gerar produtos de consumo de utilidade duvidosa (como por exemplo os inúmeros livros que proliferam nas livrarias, ou os acessórios de ioga, quando o que é verdadeiramente necessário para praticar ioga é um corpo e pouca roupa), isso é efectivamente o desvirtuar das coisas da Idade do Folhetim. Tudo é convertido em pronto a comer, previamente mastigado e superficialmente digerido, mais ou menos como os hamburgeres de fast food. Mas há um aspecto positivo, as pessoas procuram alternativas porque por alguma razão entram em crise, porque o modelo de vida que temos facilmente leva as pessoas a entrar em crise. E esse é o primeiro passo para que haja alguma mudança, é uma semente que poderá germinar. Faz parte de um processo de crescimento, individual e colectivo. Pode não dar em nada para alguns, pode ser uma roupa tão superficial como qualquer outra. Mas pode, com o tempo e com a necessidade dar frutos, e essa é a minha esperança.

Em relação ao ioga (ou yoga): é claro que hoje em dia é uma moda. Foi transformado num produto de consumo em ginásios e academias; os movimentos foram ligeiramente modificados e patenteados; gera uma panóplia de coisas mais ou menos inúteis, como roupas, tapetes (eu comprei um, shame on me), cintas, livros (eu comprei vários, shame on me), incensários, etc. Mas o ioga é realmente uma prática fantástica. A origem sânscrita da palavra ioga significa unir, juntar, re-integrar, através da disciplina física, mental e emocional. O objectivo do ioga físico é preparar o corpo para a meditação, o objectivo conjunto das outras formas de ioga visa precisamente aquilo que a Blimunda questionou, a re-invenção do homem, a integração dos processos conflituosos da psique, e consequentemente, da vida. Segundo as crenças hindus e budistas, este processo permitiria ultrapassar os ciclos cármicos da ilusão, e interromper os ciclos de renascimento, alcançando a libertação (lembra-te alguma coisa?)

Há uns anos conheci um homem extraordinário (um místico) que me disse que se toda a gente ficasse em silêncio durante 5 minutos todos os dias, o mundo mudava. A minha tosca experiência com a meditação leva-me a acreditar que ele tinha razão. Portanto potencialmente a humanidade pode mudar. Potencialmente...

Bem, isto foi mais do que um testamento, foi um super-testamento. Mas se pelo menos vocês as duas o lerem todo já fico feliz ;)

14 comentários:

Mofina disse...

Eu li. Com toda a atenção. Vou reflectir e volto...

jg disse...

Porque todo o discurso assenta em postulados logo, inevitavelmente, falacioso. Ainda que tremendamente interessante.
Mas isto sou eu, um contestatário inato, quem o diz.

teresa g. disse...

Fico à espera, Mofina

Nem todo assenta sobre postulados JG. Admito que seja falível, mas não demonstradamente falacioso. Fico à espera da contestação fundamentada.

teresa g. disse...

Queria dizer qualquer coisa como 'demonstravelmente falacioso' mas a esta hora e com este sono já nem sei se a palavra existe.

mac disse...

Eu também li. E desconcordo... Como já disse antes algures, se re-inventamos o homem, o que temos não é o homem, é outra coisa.
E sobre outras coisas eu não me pronuncio.
Sobre o homem porém, deixem que vos diga que a minha fé no dito cujo é maior que a vossa, muito maior mesmo.
Creio, firmemente, que hoje como ontem e amanhã também, serão sempre dois passos para a frente e um para trás (que chatice!!); no fim porém, acabamos mais à frente do que começámos...
Querem prova? Quantos de nós gostaríamos de viver no início do sec XX? Analisem as vertentes da vida do homem comum e respondam honestamente.
Eu NÃO.
Mas talvez marcianos, venusianos ou outros não-homens possam ter melhor resposta para o Homem.
Embora eu duvide.

privada disse...

caminhamos para o melhor do homem , a liberdade e o riso, em breve todos os nossos gestores publicos serão comediantes

Blimunda disse...

Voltei a ler a minha resposta e, evidentemente, a resposta à Mofina. Desta vez, e não é a única, tenho que concordar com o JG. Tenho a maior simpatia pelas leis do budismo e por todas as que de uma forma ou outra se integram na teosofia. No entanto, não me parece que o homem precise de mais uma doutrina. O homem precisa é de educação, formação, trabalho e, como diz o Privada, muito riso. Bem sei que é uma forma muito genérica de resumir as necessidades do homem. Tenho o maior respeito pelos movimentos sociológicos mas temo, um pouco como a Mofina, que estes sejam subvertidos, à semelhança do que aconteceu com as Revoluções socialistas.

teresa g. disse...

Eu também não defendo que se 'importe' nenhuma doutrina, de forma alguma. Isso é demasiado pessoal para ser estabelecido a partir de fora. O que acolho com simpatia, em termos colectivos, é a influência de alguns elementos da filosofia, que até agora eram pouco sentidos na nossa cultura. Como diz a Mac, o homem tem a capacidade de evoluir, embora eu continue a achar que estamos pensar em coisas diferentes quando usamos o termo re-inventar, e o homem nunca deixe de ser o homem. E também não acredito em revoluções, porque elas são normalmente resultantes de situações extremas que acabam por cair em extremos opostos. Bem, isto dava para discussões compridas, mas como sou simpatizante, mas não praticante do slow-movement tenho que me ir já daqui.

Viva o riso, sim, ao menos que os ditos senhores sirvam para isso.

(E obrigada pela paciência de lerem esta coisa enorme ;) )

Blimunda disse...

Eu também queria ir-me daqui e fazer o que me faz bem à alma. Meter as mãos na terra, como tu. Não posso! O resultado da evolução do homem, a ânsia do ter mais e do ser melhor na aparência fez das suas e agora não posso mexer na terra. Bem feita para mim!

Mofina disse...

“...porque pouco ou nada muda se não forem muitos a mudar.”Então, a mudança terá de ser necessiamente colectiva? Se assim for, toda a acção e vontade individual é nula.

Teresa, é capaz de ser apenas neste ponto que discordamos. E a partir dele, passaríamos para todos os outros.

Eu ainda acredito é no ser humano, não nas sociedades (ou comunidades). Claro que a pessoa nada é se não fizer parte de um todo. Esse todo começa naquilo que nos rodeia e é próximo. Estamos aqui, amiga, neste ocidente caótico, miserável, destruidor. E AQUI que temos de agir e aplicar as nossas próprias utopias. Claro que podemos recorrer aos ensinamentos de outras culturas, mas o essencial é que sejamos capazes de fortalecer as raízes do nosso chão. Precisamos de boas sementes. Elas existem, poucas, mas existem!

Ufa, tou com a língua na boca... No entanto ainda sou capaz de voltar com mais munições.

teresa g. disse...

Mas Mofina, qual é o problema de sermos influenciados pelas outras culturas, se essa influência pode ser significativa? Já não bastou o tempo em que fomos 'orgulhosamente sós'? 'Mankind is no island'! ;)

Claro que não devemos esquecer as nossas raízes, nem negá-las como a nossa base. Mas saber ouvir a diferença é evoluir. E o português é universalista! Isso tem o lado negativo de se esquecer de ensinar a sua língua aos filhos quando está noutro país, de desvalorizar a sua cultura, a sua arquitectura, os seus costumes face aos outros. Mas pode ter o lado positivo de saber fazer as pontes, de saber unir partes desconjuntas.

Em relação ao teu primeiro parágrafo... também dava pano para uma tese. Agora não posso, mas se quiseres mando-te umas coisitas sobre a organização de sistemas aplicada ao assunto que fiz na universidade há muuuito tempo e quase ninguém leu rsrs.

Não deites fora as munições, estas semanas que vêm vão ser uma corrida pegada para mim, mas se quiseres depois voltamos à discussão.

Blimunda, a forma como eu meto as mãos na terra não é nada relaxante, é tão contaminada pela pressão do sistema como qualquer outra actividade :( - é por isso que ando rota.

Anónimo disse...

O objectivo do ioga físico é preparar o corpo para a meditação...

Estou feita! É o corpo que controla a mente?

Agradecia resposta, mas parece que cheguei tarde.

teresa g. disse...

Caramba, Cabelos, isto já está nas calendas. Mas o prometido é devido, aqui fica:

Não há uma separação assim tão grande entre corpo e mente - mente também é corpo. Os exercícios físicos treinam a concentração, muitos exercícios exigem equilíbrio e coordenação, portanto convidam à introspecção e concentração. Uma parte do ioga são exercícios de respiração, de controlo da respiração, numa prática avançada eles são feitos durante as posições (os asanas em 'ioguês'). Quando se treina a meditação começa-se pela concentração em qualquer coisa - frequentemente é a respiração. Por isso o ioga pode ser feito por qualquer pessoa, não é uma questão de malabarismos ou contorções; embora possa parecer, isso não é de todo importante, o importante é o nível de progresso que a pessoa consegue fazer a partir do controlo (jugo - iugo - ioga) que vai conseguindo do corpo através da mente, e da própria mente. Ao fazê-lo exercita ambos. As capacidades do cérebro, de qualquer cérebro são bastante sub-aproveitadas, como deves saber. O mais importante do ioga é o treino mental, não importa o ponto de partida. Portanto tu podes praticar ioga, como qualquer pessoa. Claro que tem que ser um ioga adaptado às particularidades físicas.

Um outro aspecto, não tão importante, é preparar o corpo para ficar numa posição estável e imóvel em períodos de tempo prolongados - os monges ficam horas em meditação, há quem fale em dias, não sei se é verdade. Não há uma posição certa para praticar meditação, mas deve ser uma posição estável, que permita um equilíbrio fácil de manter. Uma das mais usadas é a posição de lótus, mas é uma posição que exige treino, porque para os principiantes é incómoda, ou impossível, e se a pessoa não estiver confortável e sem dores não se consegue concentrar, nem meditar. Claro que a pessoa também pode tentar meditar na posição estável mais fácil, deitada, mas o risco de adormecer é muito maior. Portanto um dos objectivos originais do ioga também era manter o corpo forte e flexível, e saudável, claro.

Há ainda um outro aspecto, muito mais controverso, que é a questão da 'energia', supostamente as posturas de ioga equilibram as energias. (Aquela teoria complicada de chakras, nadis, prana, etc, que eu não conheço lá muito bem) Digo supostamente porque isto é daquelas coisas em que usar o termo energias pode ser falacioso, no entanto há algo que efectivamente se sente, uma sensação de equilíbrio e vitalidade que, embora possam ter alguma explicação fisiológica, não se relacionam directamente com nenhuma causa facilmente identificável. Esse estado é importante, porque se o corpo/mente estiver debilitado ou desiquilibrado é muito mais difícil o processo de 'aquietamento' da mente que leva à meditação. Claro que só se consegue com prática regular, frequente, e com um estilo de vida saudável (não vá alguém lembrar-se de me perguntar porque é que me queixo tanto de cansaço)

Mofina disse...

Meninas, desculpem a intromissão, mas porque é que a teresa g. anda sempre tão cansada?