sexta-feira, 24 de julho de 2009

DA GENIALIDADE

De mim se há-de dizer que depois da morte de Jesus me arrependi do que chamavam os meus infames pecados de prostituta e me converti em penitente até ao fim da vida, e isso não é verdade. Subiram-me despida aos altares, coberta unicamente pela cabeleira que me desce até aos joelhos, com os seios murchos e a boca desdentada, e se é certo que os anos acabaram por ressequir a lisa tersura da minha pele, isso só sucedeu porque neste mundo nada pode prevalecer contra o tempo, não porque eu tivesse desprezado e ofendido o mesmo corpo que Jesus desejou e possuiu. Quem aquelas falsidades vier a dizer de mim nada sabe de amor. Deixei de ser prostituta no dia em que Jesus entrou na minha casa trazendo-me a ferida do seu pé para que eu a curasse, mas dessas obras humanas a que chamam pecados de luxúria não teria eu que me arrepender se foi como prostituta que o meu amado me conheceu e, tendo provado o meu corpo e sabido de que vivia, não me virou as costas. Quando diantes de todos os discípulos Jesus me beijava uma e muitas vezes, eles perguntaram-lhe porque me queria mais a mim que a eles, e Jesus respondeu: “A que se deve que eu não vos queira tanto como a ela?” Eles não souberam que dizer porque nunca seriam capazes de amar Jesus com o mesmo absoluto amor com que eu o amava. Depois de Lázaro ter morrido, o desgosto e a tristeza de Jesus foram tais que, uma noite, debaixo do lençol que tapava a nossa nudez, eu lhe disse: “Não posso alcançar-te onde estás porque te fechaste atrás de uma porta que não é para forças humanas”, e ele disse, queixa e gemido de animal que se escondeu para sofrer: “Ainda que não possas entrar, não te afastes de mim, tem-me sempre estendida a tua mão mesmo quando não puderes ver-me, se não o fizeres esquecer-me-ei da vida, ou ela me esquecerá”. E quando, alguns dias passados, Jesus foi reunir-se com os discípulos, eu, que caminhava a seu lado, disse-lhe: “Olharei a tua sombra se não quiseres que te olhe a ti”, e ele respondeu: “Quero estar onde estiver a minha sombra se lá é que estiverem os teus olhos”. Amávamo-nos e dizíamos palavras como estas, não apenas por serem belas e verdadeiras, se é possível serem uma coisa e outra ao mesmo tempo, mas porque pressentíamos que o tempo das sombras estava a chegar e era preciso que começássemos a acostumar-nos, ainda juntos, à escuridão da ausência definitiva. Vi Jesus ressuscitado e no primeiro momento julguei que aquele homem era o cuidador do jardim onde o túmulo se encontrava, mas hoje sei que não o verei nunca dos altares onde me puseram, por mais altos que eles sejam, por mais perto do céu que alcancem, por mais adornados de flores e olorosos de perfumes. A morte não foi o que nos separou, separou-nos para todo o sempre a eternidade. Naquele tempo, abraçados um ao outro, unidas pelo espírito e pela carne as nossas bocas, nem Jesus era então o que dele se proclamava, nem eu era o que de mim se escarnecia. Jesus, comigo, não foi o Filho de Deus, e eu, com ele, não fui a prostituta Maria de Magdala, fomos unicamente aquele homem e esta mulher, ambos estremecidos de amor e a quem o mundo rodeava como um abutre babado de sangue. Disseram alguns que Jesus havia expulsado sete demónios das minha entranhas, mas também isso não verdade. O que Jesus fez, sim, foi despertar os sete anjos que dentro da minha alma dormiam à espera de que ele me viesse pedir socorro: “Ajuda-me”. Foram os anjos que lhe curaram o pé, eles foram os que me guiaram as mãos trementes e limparam o pus da ferida, foram os que me puseram nos lábios a pergunta sem a qual Jesus não poderia ajudar-me a mim: “Sabes quem eu sou, o que faço, de que vivo”, e ele respondeu: “Sei”, “Não tiveste que olhar e ficaste a saber tudo”, disse eu, e ele respondeu: “Não sei nada”, e eu insisti: “Que sou prostituta”, “Isso sei”, “Que me deito com homens por dinheiro”, “Sim”, “Então sabes tudo de mim” e ele, com voz tranquila, como a lisa superfície de um lago murmurando, disse: “Sei só isso”. Então, eu ainda ignorava que ele fosse o filho de Deus, nem sequer imaginava que Deus quisesse ter um filho, mas, nesse instante, com a luz deslumbrante do entendimento pelo espírito, percebi que somente um verdadeiro Filho do Homem poderia ter pronunciado aquelas três palavras simples: “Sei só isso”. Ficámos a olhar um para o outro, nem tínhamos dado por que os anjos se tinham retirado já, e a partir dessa hora, pela palavra e pelo silêncio, pela noite e pelo dia, pelo sol e pela lua, pela presença e pela ausência, comecei a dizer a Jesus quem eu era, e ainda me faltava muito para chegar ao fundo de mim mesma quando o mataram. Sou Maria de Magdala e amei. Não há mais nada para dizer.

11 comentários:

uma espécie de jg disse...

Tem algum jeito, isto é escrita que se apresente?

Até faz mal aos olhos!

Blimunda disse...

Ou a uma espécie de olhos!

Privada, o bacoco disse...

Bem mas minha querida Blimunda este de facto é um bom livro, logo de inicio aquela do José pedir à Maria para levantar a saia, é formidavel.
Mas, deriva da historia de 1951 em que Jesus na cruz, pensa e reflecte sobre a sua vida com Maria de Madalena.
Está bem escrito, é uma boa obra. Não discordamos da qualidade, mas e mais, lês e ke? Chegas à conclusão k afinal Jesus foi um filosofo, tudo bem e mais, k há mais de Saramago que nos possa verdadeiramente confrontar.

Ok a historia de Blimunda tbm dizem ser interessante, tu tbm ja o disseste, para mim Saramgo imprime muito aquela vivencia do Portugal mediocre, rural, aquelas conclusões obvias e antigas ke definem as relações dos homens pequenos ahhahahahha.
Ok nao estou a brincar este está bom

Blimunda disse...

De Portugal medíocre? Não, amigo! Do mundo medíocre!

Privada, o bacoco disse...

Ora Blimunda onde é ke axas k o Saramago foi busar aquela do sobe a saia até à anca e já chega :-))))

Blimunda disse...

Achas que foi ao Portugal dos Pequenitos?

jg disse...

Cum caneco... uma alguidarada de conversa fiada.
É preciso ser maluquinho para emborcar textos deste tamanho.

Por descargo de consciência, li meia dúzia de parágrafos. Bastou-me.

Uma prostituta, tal como um ladrão, nunca deixa de o ser. Quando muito deixa de exercer. O que é completamente diferente.

"...foi como prostituta que o meu amado me conheceu e, tendo provado o meu corpo e sabido de que vivia, não me virou as costas."
Não me virou as costas?! Não me virou "DE" costas, ó torneiro!!!

mac disse...

jg, deixe-se de juízos desses; prostituta e ladrão são o que nós próprios seríamos em diferentes circunstâncias.
Que mal tem ser prostituta?!? Vende satisfação avulso e sem lesar outrém. Sou mulher, não sou prostituta e juro que nunca percebi essa moralidade.
Ladrão? Eu roubaria um pão na padaria e uma laranja na frutaria, se tivesse grande necessidade deles e não os pudesse comprar. Mas os motivos são irrelevantes para a categoria, né?
Bâââââ, jg... Havia de estar desiludido e desamparado, com crianças e cães com fome em casa, a ver se lhe pesava assim tão forte essa moralidade.

Do Saramago nem falo - é tão fácil ler um evangelho à nossa moda. Escrever o que lemos é ainda mais fácil mas qualquer dia levo aqui uma carga de pancada, com estas bocas.

jg disse...

Mac, eu não julgo coisa nenhuma. Opino.
Que mal tem ser prostituta ou ladrão?!
Para mim, nenhum.
Admito no entanto que o lesado pelo ladrão ou o infectado de VHS, gonorreia ou sífilis pela prostituta discordem de mim.
A questão que coloco, vai muito além dessa observação linear.
O que é um ladrão?! É quem sobrevive e tem como único rendimento o produto dos furtos?! É quem assalta bancos e transportes de valores e leva milhões de euros?! É quem assalta ourivesarias ou lojas de telemóveis?!
Uma fulana que dá umas quecas com quem lhe apetecer, pelas mais diversas razões que só a ela dizem respeito, é uma galdéria. Se os fulanos que alinharem com ela lhe derem uns trocos ou umas prendas, passa de galdéria a vaquita. Mas se assentar o rabo num estabelecimento para servir a clientela, passa a prostituta. Curiosamente se optar pela berma da estrada, é uma triste.
Além disso, umas fazem-no por opção (?) e outras por imposição. Há proxonetas violentíssimos.
Que opinião tenho sobre isto?! Cada caso é um drama diferente.
Mac, acharia perfeitamente legítimo a filha ganhar a vida prostituindo-se dado o mercado de trabalho estar saturado. Supostamente tb aceitaria que lhe invadissem a casa e lhe assaltassem o frigorífico se quem o fizesse não tivesse onde morar nem o que comer.


Não preguei moralidade coisa nenhuma. Levei o sermão à letra e apenas para provocar a Blimunda, confessa admiradora de Saramago.

Moralidade, são outros quinhentos!

mac disse...

Ficou zangado, jg? Aceite as minhas desculpas pois não era essa a minha intenção.

É que a frase "Uma prostituta, tal como um ladrão, nunca deixa de o ser" naquilo que me interessa é rigorosamente igual a "um homem honrado, tal como um corajoso, nunca deixa de o ser" e são as duas altamente fantasiosas, embora só a primeira seja normalmente utilizada com sentido desaprovador.

As pessoas mudam. Por vezes, mudam mesmo muito.

privada disse...

Mac, o povo ainda esta mt sensibilizado com o caso do Michael Jackson, para obter resposta inequivocas deve evitar o uso do termo mudança, na sua frase chave. Gera confusao.